sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Por Soninha 2/2

Pós-guerra (2)

Aqui e ali, ânimos exaltados. Nos olhos de alguns guardas, homens e mulheres, ÓDIO. Impressionante. Ai de quem chegasse perto. Pedir a identificação, perguntar “cadê seu chefe, quem está no comando?” recebia, em resposta, um olhar feroz, um rosnado, uma ameaça na forma de cassetete erguido ou mão sobre o coldre do revólver. Um rapaz ao meu lado observou, com uma calma surpreendente: “Eles vão dizer que foi o rap. Começaram a confusão bem na hora do rap pra dizer que o rap é que tem culpa”. O rap já tinha desistido... Subiu ao palco um cantor de reggae, cantando um salmo. Mas o clima ainda era horrível. Eu não conseguia entender: por que dar uma rasteira, derrubar alguém que está tentando fugir do tumulto, dar várias cacetadas e sair? Em um canto do praça, um homem sentado no chão chorava e esfregava o braço: “Tá doendo!”. Em volta dele, uma roda de GCM, isolando-o como se fosse uma mina terrestre. Ele chorava, chorava, chorava. Pedia pelo amor de deus. Me aproximei: “Vocês não vão chamar socorro?”. Faziam sinal para que eu me afastasse, ríspidos. Se eu não fosse mulher, teria levado bordoada, certeza. “O que ele fez? O que vocês estão esperando?”. O homem gritava e um guarda aproximava bem o rosto do dele, urrando: “CALA ESSA BOCA! CALA A BOCA, CARALHO!”. E ameaçava dar com o cassetete outra vez. Em um homem sentado no chão, chorando de dor! Eu perguntava, mais calma do que costumo ficar nessas horas: “Pra que isso?”. Um guarda virava a cara, envergonhado; outros faziam sinal para me afastar e não me meter, com ar de ódio. Acho que eles viram todos os filmes errados. Não assistiram aquelas cenas de policiais frios, inabaláveis, com equilíbrio de mestre de King Fu, lidando com desaforos, impropérios, cusparadas, como se fossem de aço. Rendendo, imobilizando, prendendo no puro cumprimento do dever, e não como se estivessem em uma briga de rua e fossem de uma das gangues rivais. Pareciam pitbulls, ou pitboys. Valentes? Covardes. Quatro ou cinco contra um. Diante de uma pessoa exaltada, nervosa, reagiam com o dobro da exaltação e nervosismo. O dever deles não seria justamente o contrário? Protegidos, armados, fortes e treinados, como podem agir com tanta raiva, tanto sangue nos olhos? Nem vou descrever outras cenas, outras agressões. Houve mais alguns ataques coletivos, descontrolados. Um inspetor presente, que não era superior imediato daqueles guardas mas tentava organizar as coisas ali, mal conseguia se fazer ouvir por eles. Um ou outro guarda tentava serenar os ânimos, mas a maioria – é triste dizer, mas era maioria – estava a fim de mesmo de descer o cacete. Para concluir: uns quinze ou vinte minutos depois, finalmente levantaram o homem que chorava. E...? Torciam o braço dele para trás, com violência indescritível, para algemá-lo. CLARO que ele resistia. Chorava, gritava, IMPLORAVA, mas eles juntaram dois ou três para fazer o serviço e socá-lo para dentro de uma viatura. Felizmente, consegui que alguém me respondesse: estavam levando para o 1º. DP. Qual a acusação? Nenhuma resposta. Se quisesse, eu que fosse ao Distrito acompanhar. Fui. O delegado e os escrivães nos receberam muito bem. De imediato, pediram para levar os feridos (eram 2) ao Pronto-Socorro. Um deles tinha um talho na cabeça; segundo os guardas, ele tentou fugir ao chegar ao DP e teve a idéia de jerico de dar com a própria cabeça, com toda força, no vidro da viatura, que quebrou. Não tentou chutar, morder ou cabecear um guarda; tentou furar a janela com a testa... Segundo uma testemunha, deram com a cabeça dele no vidro, isso sim. No caminho do hospital, os GCM ameaçavam os rapazes; já no PS, ficavam vigiando para ver o que os feridos iam dizer aos enfermeiros. “Tomei uma pedrada”, disse o do talho. Os guardas não o desmentiram. Ele olhou bem para a moça que o atendia, que baixou os olhos, compreensiva e temerosa. De volta ao distrito, os guardas contaram sua versão da ocorrência. Mostraram um paralelepípedo como prova do que tinha acontecido na praça. Um troço monstruoso, difícil até de levantar do chão. Talvez tivesse sido arremessado por uma catapulta... Deram queixa por incitação à violência, apologia ao crime, desacato. Disseram que tinham sido agredidos com uma chuva de pedras e caixotes, e por isso tinham reagido. Um deles esfregava o braço o tempo todo, franzia a testa e fazia bico, como se estivesse doendo muito. (Mais tarde, no IML, dava risada e dava de ombros...) Enfim, uma tristeza, uma tragédia. Porque não foi só um caso de descontrole em um evento de rua; não foi só uma demonstração de excesso motivado por despreparo. Foi uma exibição de ódio e preconceito. (Na hora da confusão, um guarda dizia para os rappers, ainda em cima do palco: “Depois um toma um tiro, aí vem a mamãezinha chorar”; o homem do braço torcido ouviu de um guarda: “Volta pra Bahia, desgraçado”; outro guarda disse para outra pessoa: “É pra acabar com essa palhaçada de Natal”). Quem tem esses sentimentos, essas reações, não tem a menor condição de estar na rua. Se eu tenho de estar preparada para ser xingada, que dirá um guarda? Ele tem de cumprir a lei. Se um sujeito atirou uma pedra, tem de ser detido, fichado, processado... Não apanhar de quatro ou cinco. Não se pode admitir espancamento por autoridade! E o homem do braço jura que não fez nada, só saiu correndo pra fugir do tumulto. Por coincidência, ele aparece nos meus 8 segundos de vídeo, quietinho, sozinho, vendo o show com um ar sorridente, bem longe de onde começou a confusão. No chão da delegacia, ele chorava, chorava, chorava. “Isso é Natal?”. No dia 24 à noite, depois de serem fichados como “autor/vítima”, eles voltaram para seus albergues. Hoje devem estar por aí, catando papelão. (Na hora em que o do braço foi levado pela viatura, veio um outro correndo atrás de mim: “Ele trabalha, doutora! Eu conheço ele lá do ferro-velho! É trabalhador, é gente de bem!”). Que Natal... Preocupo-me seriamente com os guardas. Que sejam afastados das ruas; que será deles? Não podem lidar com gente. Não podem ter cassetete, pimenta, revólver. Para onde iriam? Se forem exonerados, que farão por aí essas pessoas? Que trabalho serve para quem tem tanto ódio? Na direção de um ônibus, jogariam o carro para cima do pedestre, como o doido que, meses atrás, passou por cima de um velhinho na Brasilândia, praticamente de propósito. Em vez de reduzir para o velhinho terminar de atravessar, acelerou. Matou. Tem muito doido nessa cidade. São Paulo precisa de paz, de saúde mental. Antes que eu me desespere outra vez, ou me desespere da vez, lembro de Berlim. Da barbaridade da guerra, da barbaridade do muro. Passou. Ainda deve estar cheio de doido por lá (claro que está), mas a maioria vive e circula em paz. E nem faz tanto tempo assim que era tudo horror e ruína. Em 2008, que estejamos mais próximos da Berlim de hoje e mais distantes dos escombros, trincheiras e muros de uma cidade em pé de guerra. Paz, São Paulo, paz.

http://blogdasoninha.folha.blog.uol.com.br/

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