sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Por Soninha 1/2

Pós-guerra
“Desce daí, sua vagabunda! Filha-da-puta!”

Eu já estive em um número suficiente de shows de rock, em cima do palco ou diante dele, e de partidas de futebol, para me abalar com xingamento. Ou coisa pior: em um Skol Rock, levei um copo amassado na testa (bem achatadinho, parecia uma estrela ninja, com grande aerodinâmica). Não, aquele público não tinha nada contra apresentadores da MTV, mas era minha 12ª. entrada no palco. Nas onze anteriores, tinha anunciando as bandas novatas que eram as finalistas do festival, mas os milhares de pessoas presentes estavam ali para ver as duas últimas, Bad Religion e Offspring, e não agüentavam mais olhar para a minha cara...

Em eventos de outro tipo, alguns personagens podem sempre esperar recepção pouco calorosa: políticos, polícia, repórteres da Globo... Às vezes a bronca é pessoal, mas é comum tomar uma vaia em nome da instituição; o desaforo se dirige a pessoas jurídicas, seja lá quem for a pessoa física diante do microfone.

O sujeito à minha frente não sabia quem eu era, mas não queria me ver ali. Queria os shows de música. Ele e mais uns três ou quatro, embriagados pelo álcool, pela natureza ou a vida dos últimos anos. São do povo "de rua". “Você não é a prefeita? Então arruma um trabalho pra mim”, gritava e gesticulava um deles, como se estivesse travando uma luta de boxe com o vento. Sorri: “Eu não sou prefeita. Sou vereadora”. Ficou confuso como se tivesse levado um direto no queixo. Abaixou os braços e sorriu torto. Parecia o soldado de um episódio do Asterix (acho que é “O Escudo Arverno”), tentando gritar “Viva Vercingetórix!”.

Enfim, não liguei. OK, eles odeiam políticos e discursos. Quem há de condená-los por isso? Mas outros faziam questão da minha presença e da fala, ouviram com respeito, gostam de ser merecedores de atenção. Era o Natal Solidário, festa da população de rua que acontece todo 24 de dezembro em alguma praça pública. Em 2007, foi na Sé. Monta-se um palco, há apresentações de artistas diversos – quase todos, gente “da rua” como eles – e distribuição de lanches e brinquedos para as crianças.

A alegria simples daquelas pessoas é de cortar o coração. Momentos antes, havia se apresentado um cover do Raul Seixas (dublando). Incrível, incrível mesmo ver a quantidade de letras que o público sabia de cor. Cantavam junto, interpretavam a letra com mímica, vibravam. Sujos, maltrapilhos, desdentados, descalços, emocionados e felizes.

Se bem que muitos, muitos mesmo, não manifestam emoção nenhuma. Ficam quietos olhando.

Estava indo tudo muito bem; o rapaz da organização a toda hora agradecia “à Prefeitura de São Paulo, a Guarda Civil Metropolitana, à Polícia Militar do Estado de São Paulo”. Ano passado, tivemos problemas com a GCM; este ano, os guardas observavam tudo tranqüilos, solícitos.

Até que começou o rap.

Estava tudo tão calmo que eu já estava indo embora, deixando o pessoal curtir a festa. Só não fui para prestigiar o grupo e ver ao menos uma música. Fiquei feliz por ter ficado – o público reagiu super bem. Os mais animados pulavam, punham as mãos para cima, atentos à rima e aos movimentos dos MCs. Estava tão bacana que comecei a gravar um vídeo com minha câmera fotográfica, mas a memória não deu nem para o cheiro. Em 8 segundos, mal começada a panorâmica pela praça, não havia mais “espaço no memory stick”. Que pena.

Mal sabia eu que o “espaço” faria falta não para mostrar a paz, mas a guerra.

Antes que eu percebesse que havia alguma coisa errada, o grupo interrompeu a apresentação: “Nós vamos dar um tempo porque os ânimos ali estão agitados. Calma, gente”. No lado oposto ao que eu estava, uma pequena aglomeração. “Xi, devem estar brigando”. Não dava para ver nada, exceto o bolo de gente olhando alguma coisa.

O Papai Noel da festa – o Tião, figuraça, ex-morador de rua, autor de livro e peça de teatro – pegou o microfone e parecia um dalai lama: “Povo de rua, vem pra cá. Tumultua não. Venham aqui pra frente do palco. GCM: calma. Não precisa se exaltar. Afasta, pessoal. Calma, GCM”. Eu não enxergava nada, mas fiquei morrendo de medo de como a GCM iria reagir (e nem sabia reagir a que, porque não vi nada acontecendo!). O Tião continuava falando pausadamente, com cuidado para não insuflar ninguém. Até para a polícia ele chegou a pedir ajuda para serenar os ânimos.

Não adiantou. A cena seguinte foi aterrorizante: guardas tacando spray de pimenta na cara das pessoas e sacando os cassetetes (ainda bem que não foram os revólveres!) e dando, dando, dando com fé em quem estivesse na frente. Brandindo o cassetete como uma batuta de maestro, pra tudo quanto é lado. Logo o bolo de gente se desfez em correria – gente passando mal, vomitando, desesperada tentando respirar. E guardas correndo atrás de quem estivesse correndo também, dando cacetada nas costas, passando rasteira, chutando e batendo em gente caída.

Foi horrível. Não vi o começo da coisa, mas o que me contaram foi o seguinte: três guardas foram para cima de um cara que estava de costas para eles, dominaram, jogaram no chão e tentaram algemar e levar embora. Não disseram o que ele tinha feito. Ninguém que estava por perto viu qualquer atitude errada por parte dele. A ação foi bem violenta; a atitude deveria ter sido muito grave, e mesmo assim não se justificaria tamanha truculência.

Inevitavelmente, quem estava por perto foi tentar interferir. “Por que vocês estão levando ele? O que foi que ele fez?”. “Não te interessa. Não se mete. Cuida da sua vida”. “Como assim, não me interessa? Fala o que ele fez!”. Os GCM continuaram agredindo o cara rendido e começaram a ameaçar quem estava em volta. Um rapaz começou a fotografar a cena e um guarda foi para cima dele e ficou tentando arrancar a câmera da sua mão. Ato contínuo, usou pimenta e deu-lhe um chute na canela.
E aí foi. Correria e porrada. Fiquei com medo de começar a voar pedra, mas não vi nenhuma. É capaz que tenha tido, mas não vi. Fiquei tentando acudir uma moça que não conseguia respirar, rezando para não acontecer mais nada, quando vieram me dizer: “Os guardas estão tirando a identificação do uniforme!”. Céus, a coisa estava feia e ia piorar. (cont.)

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